19.6.08

"FAZER DA VIDA UMA OBRA DE ARTE"



ANTÓNIO ALÇADA BAPTISTA,
O PROFETA DOS AFECTOS

Nas antigas escrituras a divindade encarregava os sábios/profetas de avisar os homens. Portadores de uma mensagem nova, eram precursores do seu tempo. E o tempo dava-lhes razão.

António Alçada Baptista foi um precursor do primado dos afectos. Soube ler nos sinais da História os indícios de um novo tempo. Correndo o risco de ser mal entendido, denunciou o racionalismo estreito dos sistemas políticos redentores, defendendo a necessidade de começar pelos sentimentos, pelo culto das afeições e do amor, pela introspecção - peregrinação interior como forma de desenvolvimento espiritual. Apercebendo-se da armadilha fatal do consumismo, afirmou a prioridade absoluta do SER sobre o TER.A religião tradicional católica não ficou imune ao seu exame. Aliás, foi por ela que AAB iniciou o seu percurso de denúncia das verdades estabelecidas. A sua “Peregrinação Interior – Reflexões sobre Deus”, publicado em 1971, foi uma enorme pedrada no charco do regime político e das mentalidades retrógradas da época. Os subtítulos da portada interior do livro são esclarecedores: «Quadros da vida quotidiana numa sociedade em vias de desenvolvimento; fragmentos do memorial do combate que Jacob Alçada Baptista vem travando com o anjo que lhe foi atribuído».
O projecto de Alçada Baptista tinha dois propósitos. 1º: Examinar as bases da educação tradicional católica e confrontá-las com as realidades do tempo actual; 2º: Decifrar os sinais de inquietação do homem contemporâneo, procurando saídas para a sua angústia existencial.
Este programa de acção não era novo. A originalidade de A. Baptista está no modo como o abordou.: expondo-se! Ele, um filho da burgo-aristocracia beirã, com futuro garantido no regime da época, decidiu destapar o cenário da sua origem de classe e fazer o inventário da imensa hipocrisia que o sustentava. E fê-lo falando abertamente de si, verrumando impiedosamente o seu percurso pessoal, vazando-o publicamente nos muitos livros que escreveu. Um deles, o romance “Os Nós e os Laços” (1985) teve um enorme sucesso. Não pela sua qualidade literária - que era mediana – mas porque expunha, de forma simples e eficaz toda a teoria do autor sobre a humanidade, os seus sofrimentos e a forma de os enfrentar.
Ao reler os livros de AAB verificamos que o tempo lhe deu razão. Por isso eles continuam tão actuais.


Alçada Baptista em discurso directo

A cultura do feminino

«A nossa sociedade vive na cultura do masculino por causa do poder. Toda a nossa educação foi feita à base dos grandes heróis, dos homens que detinham muito poder — Napoleão Bonaparte, Alexandre, o Grande, ou Afonso de Albuquerque. Certas constantes fisiológicas, como a menor força física e o embaraço periódico da maternidade, decretaram que o homem monopolizasse o poder. Como este tem sido o instrumento determinante da escrita e da edificação da História, foi construído um universo de valores ditos “masculinos”.
Aquilo que de mais importante aconteceu na minha vida foi a entrada da mulher na História. Ela não estava na História quando eu nasci. Sou do tempo em que, quando uma mulher passava a conduzir, se dizia: “Olha uma mulher a guiar!”.»
. «O homem deve assumir sem vergonha o mundo dos afectos. Porque hoje acabou o poder absoluto e as pessoas têm muito mais poder, de muitas naturezas, a nível individual.»

O amor

«Os comportamentos do amor estão a modificar-se e isso fundamentalmente pela intervenção do feminino na sociedade: a liberdade sexual, o direito ao prazer e ao uso do corpo, tudo isso modificou a liturgia do desejo porque impôs novas regras na aproximação da mulher com o homem»

«O mais importante: saber ter com os outros uma relação afectuosa no tempo e isso só é possível se nos dispusermos a dar e a compreender a singularidade de cada um.
A felicidade humana tem que ser construída a partir da consciência que um homem ou uma mulher tiverem de si próprios e da sua liberdade para poderem talhar com ela o seu próprio destino. Mas liberdade não é libertinagem, não há liberdade sem responsabilidade e sem a consciência de que somos solidários. Isso, a meu ver, modificaria radicalmente a relação entre as pessoas, porque um dos dramas do amor é que as pessoas não se respeitam. Respeitar os outros é reconhecer que eles são pessoas livres e agir em conformidade com esse reconhecimento. Creio que isso pode dar relações muito mais duradouras do que este jogo de sedução e astúcia com que são feitos os quadros culturais do amor.»
(Declarações retiradas de diversas entrevistas a órgãos de comunicação social escrita)

Vida e obra
Nascido na Covilhã, em 1927, estudou num colégio de Jesuítas em Santo Tirso. Licenciou-se em Direito pela universidade de Lisboa. Foi um dos fundadores da revista O Tempo e o Modo, que dirigiu entre 1963 e 1969. De 1957 a 1972 foi director da prestigiada Moraes Editora. Foi presidente do Instituto Português do Livro de 1979 a 1985. Exerceu o jornalismo em vários periódicos (A Capital, O Semanário, O Dia, A Tarde, por exemplo) com publicação regular de crónicas, algumas das quais já reunidas em livro. O reconhecimento público pela sua acção cívica e cultural valeu-lhe diversas condecorações: Oficial da Ordem de Santiago, a Ordem Militar de Cristo, e a Grã-Cruz da Ordem do Infante.

A sua obra literária reparte-se entre a ficção e o ensaio de memórias pessoais e colectivas:
Documentos políticos, 1970 / Peregrinação Interior – I, Reflexões Sobre Deus, 1971 (reflexão pessoal e social) / O Tempo nas Palavras, 1973 (Crónicas no jornal “A Capital”) / Conversas com Marcelo Caetano, 1973 / Peregrinação Interior – II, O Anjo da Esperança 1982 / Uma Vida Melhor, 1984 / Os Nós e os Laços, 1985 (Romance) / Catarina ou o Sabor da Maçã, 1988 (Romance) / Tia Susana, Meu Amor, 1989 (Romance) / O Riso de Deus, 1994 (Romance) / A Pesca à Linha – Algumas Memórias, 1988 / O Tecido de Outono, 1999 (Autobiografia romanceada / Um Olhar à Nossa Volta, 2002 (crónicas nos jornais “O Dia” e “A Tarde” / A Cor dos Dias – Memórias e Peregrinações, 2003. Edições Presença.



CITAÇÕES

“A autobiografia espiritual que são, efectivamente, os dois volumes de Peregrinação Interior, contestando com subtil ironia e transparência ideológica o ambiente que rodeou a sua infância e juventude, foi considerada na altura, pela crítica, uma obra-prima do seu género, à qual se associava a vasta cultura filosófica, bem travejada e profundamente actualizada.”
(Dicionário da Literatura Portuguesa, ed. Presença, 1996)

“ O que mais admiro no A Alçada B. é o facto de ser um homem livre, que usa os afectos, os rituais da amizade, a arte do diálogo e da conversa como método para compreender e aproximar pessoas. É um praticante activo da aristocracia do comportamento - «a vida é a nossa obra de arte» - por isso lhe encontramos uma coerência, uma generosidade, uma dúvida serena, uma prática permanente de procura do sentido da dignidade humana.”
(Guilherme d’ Oliveira Martins, Jornal de Letras e Artes, 26 / 6/ 2002)